segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

“Inglês é que é fácil”

Todo professor de francês já ouviu de seus alunos (uma vez ou várias) algo como: "Francês é muito complicado. Acho inglês bem mais fácil, porque quase não tem conjugação de verbos!"
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De fato, em inglês, para aprender um verbo, normalmente basta conhecer três formas: o infinitivo, o passado e o particípio passado. Para felicidade geral da nação, na maioria das vezes essas duas últimas formas são iguais. As flexões (-s para a 3ª p. do singular do presente, -ed para o passado e -ing para o gerúndio) são simples e a maior parte dos tempos se forma por auxiliares.
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Se eu dissesse que a conjugação em francês não dá certa dor de cabeça, seria mentira – não vou negar que tem um monte de terminações, verbos irregulares, primeiro grupo, segundo grupo, terceiro grupo etc. E vou deixar para outro dia o paralelo que mostra que os verbos em francês são mais simples que em português: é da comparação com o inglês que estamos falando.
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Mas o que sempre me pergunto é por que essa coisa de verbo é colocada como o medidor da dificuldade de uma língua estrangeira, como se a gente não tivesse várias outras coisas para aprender. Se eu quisesse ser chato, diria que a suposta complicação do francês serve de desculpa para os alunos que não estudam o bastante. Se eu quisesse ser extremamente sincero, confessaria que, como professor, estou ciente de que nem sempre consigo fazer com que todos os meus alunos compreendam e assimilem esse ponto gramatical. (Mas eu faço o que posso, juro!)
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Acontece que o inglês parece mais fácil porque temos muito mais contato com ele: filmes, seriados e músicas nesse idioma são bastante difundidos no Brasil. Pegamos muita coisa "por osmose", quase sem querer. Que ótimo! Mas quem estuda outra língua pode conseguir muito material na internet e no movimento alternativo de circulação de bens culturais (eufemismo que inventei para pirataria – ficou bom, né?).
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O importante é você lembrar, antes de continuar lendo, que minha intenção não é te convencer que francês é moleza. Quero simplesmente que você entenda que a língua de Shakespeare é bem menos simples do que algumas pessoas gostam de pensar. Além disso, não vale o camarada estudar inglês durante 10 anos (e às vezes até fazer intercâmbio nos EUA) e depois vir me dizer, no meio do segundo semestre, que acha francês complicado "porque em inglês eu consigo dizer tudo". Alguns soltam a pérola na terceira semana de aula do primeiro semestre...
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De qualquer forma, o importante é lembrar que ficar martelando malices do gênero "conjugar verbo em francês é muito complicado" não leva a lugar nenhum. Por outro lado, há diversos fatores que tornam o francês mais fácil do que o inglês e levam a balança para perto do meio. Seguem alguns exemplos:
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1) A ordem das palavras na frase, em francês, é quase sempre igual à do português. Nada, portanto, daquelas construções típicas do inglês que nos parecem "extraterrestres": paper-based process automation solutions ("soluções para a automação do processo baseado em papel" – em francês, solutions pour l’automation du procédé basé sur le papier).
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2) O francês é uma língua neolatina, "prima" do português, e tem muitas palavras cognatas, ou seja, parecidas com as nossas. É por isso que é mais fácil para o professor de francês ser entendido por seu aluno quase de imediato, desde que fale pausadamente e escolha bem o vocabulário. É por isso, também, que um brasileiro que só fala português se sente mais à vontade lendo em francês do que em inglês. Imagine que você não sabe nada de francês nem de inglês e compare a transparência dessas frases: Elle se sent bien e She feels all right.
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3) Em francês, se você ouve uma palavra, não tem certeza de como ela se escreve (aliás, uma pedra no sapato de quem aprende francês é a homofonia, isto é, o fato de algumas palavras terem a mesma pronúncia mas serem escritas de um jeito diferente). Por outro lado, ao ver uma palavra escrita, raramente você se engana – é lógico que a maneira de ler não é como em português, mas uma vez que você aprende, há razoavelmente poucas exceções. Com relação à ortografia do inglês, costumo dizer que é algum tipo de piada sádica: compare a pronúncia da sequência de letras -ough- nas palavras though, tough, through, thought e enough. Ou das letras -ea- em I read, I've read, break, peak, pearl e pear. Ou de -all em all e shall. Nem vale a pena me estender aqui, se você fala inglês, já conhece o drama. (É claro que você vai pensar nos acentos do francês, e pode até mencionar que um palavrãozinhho como hétérogénéité conseque ter cinco deles. Mas os famosos acentos são menos complicados do que sonha tua vã filosofia: um dia ainda falo disso.)
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4) A fonética do inglês, por outro lado, é mais complexa que a do francês: tem mais sons vocálicos e mais sons consonantais (não é uma impressão minha, é um dado objetivo). Aliás, a enorme riqueza sonora daquele idioma é um de seus aspectos que mais me encantam. Por mais que você possa achar complicados os "biquinhos", as nasais e os erres do francês, tem que admitir que não é a coisa mais fácil do mundo aprender a pronunciar palavras como throw, world e internet, a diferenciar fit de feet ou bad de bed e a resistir à tentação de pronunciar eyes igualzinho a ice...
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5) Além disso, é bom lembrar que a gramática inglesa não é a coisa mais regular do mundo. Algumas "esquisitices" desse idioma inspiraram o poema Four all who reed and right. Evidentemente, toda língua tem suas bizarrices, mas convenhamos que aqueles phrasal verbs, cruz credo! (Phrasal verbs são expressões criadas a partir da combinação entre um verbo e uma preposição ou um advérbio, com um sentido que não pode ser deduzido das partes, tipo turn on, turn off, turn over, get over, get up, get around to, give in, give up, give out e umas outras centenas).
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Mas não quero me estender demais. Aliás, por que estender é com s e extensão é com x? Português é muito complicado...

5 comentários:

  1. eu, que comecei o francês antes do inglês, sempre enfrentei esse tipo de discussão. eu costumava usar o argumento da ordem das palavras, da gramática "alienígena", do inglês.

    uma vez eu discutia com uma colega sobre isso e tentei mostrar que, apesar da conjugação complicada, os tempos verbais do francês guardam muita semelhança com os do português, enquanto em inglês a distância é muito maior e, confesso, me perco nos auxiliares O.o

    aguardo o post da comparação com o português.

    gr abraço.
    vítor.

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  2. ops, me perdi foi no meu texto e não disse o fundamental. quando consegui mostrar que havia muitas semelhanças entre o português e o francês, ela me disse: ah, mas eu não entendo nada do português...

    vai aí uma falha das nossas escolas...

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  3. Acho que a grande falha das nossas escolas é que ela leva os alunos a pensar que eles não falam português. Ora, 190 milhões de pessoas não sabem sua língua materna?! O problema é que a escola muitas vezes diz aos alunos um tipo de língua escrita, baseada no idioma falado em Portugal, é a única maneira "certa" de se exprimir, e preocupa-se muito mais com a memorização de uma terminologia imprópria e contraditória do que com o uso real. É uma discussão enorme: melhor dar uma olhada no site do Marcos Bagno, autor de "Preconceito linguístico" e "Português ou brasileiro?": www.marcosbagno.com.br. Esse grande linguista pode explicar o assunto melhor do que eu.

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  4. sim, eu li 'preconceito linguístico' e 'a norma oculta', mas não gostei desse último. apesar de não discordar propriamente, achei panfletário. mas não sabia que ele tinha um site, vou conferir.

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  5. olá! estou por aqui pela primeira vez, aprendi francês quando criança, mas só agora estou tentando escrever. É um pouco difícil, mas nada é impossível quando descomplicamos nossa maneira de ver as coisas. Seu texto é muito útil aos que emperram no avanço dessa lingua, que é tão bela! Parabéns, continuarei vendo outros posts.

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