Em 7 anos ensinando francês, já perdi a conta de quantas vezes usei aquele cacoete aprendido com uma antiga professora: sempre que alguém esquecia de usar o pas da negação, ela dava um tapinha no quadro ou na própria mão, para fazer um "pá" e a gente não deixar a negação pela metade.
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Antes de entrar no assunto que me interessa hoje, convém lembrar que nem toda negação leva pas, como mencionei numa postagem recente. Não vou entrar em detalhes porque basta você consultar uma gramática ou o dossier do B1. O que eu gostaria é de responder à pergunta que, por razões compreensíveis, não costuma ser abordada nos livros didáticos: Por que, em francês, a negação é composta de duas palavras?
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O fato é que ne (muito frequentemente n', clique aqui para revisar) contém apenas um e sem acento e, portanto, é uma palavra muito fraquinha: se bobear a gente nem ouve. Assim, já na Idade Média, os falantes de francês sentiam necessidade de marcar a negação de modo mais claro, e para isso empregavam alguns monossílabos, de acordo com o verbo. Exemplos:
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Je ne marche pas. Je n'avance pas. (Eu não ando / avanço passo.)
Je n'écris point. (Eu não escrevo ponto.)
Je ne dis mot. (Eu não digo palavra.)
Je ne mange mie. (Eu não como migalha.)
Je ne bois goutte. (Eu não bebo gota.)
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Como se pode ver, os verbos tinham a ver com o sentido específico dessas palavras (que até hoje continuam substantivos autônomos, já fiz até um poema brincando com isso). Ao longo do tempo, pas se generalizou como o mais importante desses auxiliares de negação, passando a ser usado no lugar dos outros. Em francês culto escrito, ainda se pode encontrar exemplos dessas antigas negações, especialmente com point, que funciona como uma negação um pouco mais enfática do que o simples pas. Há diversos provérbios e citações bíblicas ou literárias com point.
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Na língua falada de hoje em dia, por outro lado, só se ouve pas, a não ser nos casos em que a presença de uma outra palavra de sentido negativo (plus, jamais, personne, rien, aucun) já dá conta do recado. Na verdade, a tendência na oralidade é "engolir" o ne / n', que é a parte menos importante da negação. Ainda assim, é importante lembrar que o francês rebuscado (la langue soutenue) admite a formação de algumas negações apenas com o ne, especialmente com os verbos savoir e pouvoir. É célebre a frase do Tartuffe de Molière: Cachez donc ce sein que je ne saurais voir. "Esconda esse seio que eu não saberia (= poderia) ver." Um outro exemplo: je ne peux vous répondre ("não posso lhe responder"), que normalmente se diz je ne peux pas vous répondre.
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Há, entretanto, construções com ne (sem pas) que não são negativas: o chamado ne explétif, ao qual já fiz alusão outro dia, e a construção ne... que, que já mereceu uma postagem bem detalhada.
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Para terminar, vamos apenas recordar que a negação com duas palavras também existe naquela língua exótica chamada português: devido à nossa inclinação a pronunciar o "não" como "num" (em muitíssimas situações, pronunciar "não" muito direitinho soa até antipático), sentimos necessidade de jogar um outro "não" ou um "nada" no final da frase. Vem à minha mente o eco de antigos diálogos com minha avó:
- Para de ler e vai dormir, menino!
- Num vou, não! (Ou simplesmente "vou não") Eu vou dormir na hora que quiser!
- Vai nada!
(Fim de papo.)
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