Uma das características mais marcantes do francês é a enorme frequência do apóstrofo. Curiosamente, ao longo de quase sete anos como professor, percebo que é um aspecto que passa despercebidos a muitos alunos. Meus pupilos normalmente esquecem de colocar essa vírgula flutuante onde ela é obrigatória ou a escrevem onde ela não poderia estar. E, normalmente, cometem esses erros opostos no mesmo texto!
.Mea culpa: no material didático, o uso do apóstrofo só é explicado de maneira sistemática quando da apresentação dos artigos definidos e dos pronomes-sujeitos. E apenas na
primeira unidade do
primeiro semestre. O assunto não é retomado depois, até porque aparecem outros temas, mas o fato é que a ortografia é um ponto bastante negligenciado pela maioria dos livros de língua estrangeira. O resultado é que, na falta de instruções mais detalhadas, os alunos seguem a intuição, e essa, creio eu, é orientada pelo conhecimento do inglês. Se, nesse idioma, a escolha entre
I am e
you are ou
I’m e
you’re, por exemplo, depende do grau de formalidade do texto, assim também deve ser em francês. Imagino que os alunos pensem assim. Acabam esquecendo que, no início do curso, o professor disse que era proibido escrever, dizer ou mesmo pensar uma monstruosidade como
je habite, em vez de
j’habite. Além disso, um mínimo de leitura deixa claro que esse tipo de coisa nunca acontece, em nenhum tipo de texto.
Meia culpa: culpa compartilhada...
.Bom, mas se o problema é falta de explicação sistemática, lá vai:
o apóstrofo é de uso obrigatório quando a vogal final de certas palavras encontra a vogal inicial ou o h mudo da palavra seguinte, e serve para marcar que essa vogal final não é pronunciada. Essa queda de uma vogal se chama “elisão” (
élision). Aqui, me refiro especificamente aos seguintes vocábulos:
je, me, te, se, le, la, ne, que e
de, que viram
j’, m’, t’, s’, l’, n’, qu’ e
d’. SISTEMATICAMENTE. OBRIGATORIAMENTE. E exatamente porque se fala assim. Se, em vez de pronunciar
j’ai (jé ou jê), você soltar
je ai (je-é), não vai dizer “eu tenho”, e sim
je hais (“eu detesto”, do verbo
haïr). Isso seria... detestável.
.Não tenha vergonha de usar tantos apóstrofos quanto for necessário:
J’imagine qu’André n’a pas de problème d’argent, parce qu’il t’a acheté un collier en or (“Imagino que André não está com problema de dinheiro, porque ele comprou um colar de ouro para você”). Desculpem o exemplo meio esquisito, não estava muito inspirado.
.Algumas observações importantes:
Si só se torna
s’ diante de
il.
Lorsque (“quando”) só sofre elisão antes de
il(s), elle(s), on, en e
un(e) – nesse caso, escreve-se
lorsqu’. Com
quoique (“embora”, “ainda que”) é quase a mesma coisa (
quoiqu’), com exceção de
en –
Quoique en ce moment... (“Embora neste momento...).
.O adjetivo possessivo feminino (
ma), quando se encontra diante de uma vogal ou de um h mudo, não se transforma em
m’, e sim em
mon: ou seja, embora
la + amie fique
l’amie (“a amiga”),
ma + amie = mon amie (minha amiga). Até porque
mamie significa “vovó”.
.Na regra ortográfica,
NUNCA se usa apóstrofo antes de consoante. Mas você já deve ter visto isso, até nas letras de música que eu posto aqui, e as do
Yves Jamait são o melhor exemplo. Bom, trata-se de uma representação da língua falada, na qual costumamos “engolir” o
e não acentuado e mesmo algumas consoantes ou algumas palavras que, em princípio, deveriam ser pronunciadas. Assim, se você se deparar com algo como
i m’dit qu’y a pas d’souci mais j’crois pas qu’tu sois d’accord, saiba que se trata de um modo de retratar a maneira coloquial de pronunciar a frase
il me dit qu’il n’y a pas de souci mais je ne crois pas que tu sois d’accord (“ele me diz que não tem problema, mas eu acho que você não concorda”). Mas lembre-se: se você escrevesse assim numa prova, seu texto pegaria sarampo!
.E
pelamordedeus: o artigo definido plural (
les) não vira
l’ nunca-jamais,
em hipótese nenhuma! Da mesma forma, não faz sentido usar apóstrofo onde não existe uma vogal para cair, como é o caso do artigo indefinido masculino (
un): escrever
un’hôtel, em vez de simplesmente
un hôtel, é um atentado ao bom senso. E como chatice pouca é bobagem, vou insistir: também não se usa apóstrofo com o artigo indefinido feminino (
une).
.Concluindo: acima, falei mais de uma vez sobre “h mudo” (
h muet). Explico: não é que exista alguma situação em que o h tenha som, mas algumas palavras começadas com essa letra não admitem
élision nem
liaison (aquele fenômeno no qual
les hôtels se pronuncia “lêzôtél”). Esse
h aspiré está devidamente indicado no dicionário com um asterisco antes da palavra ou com alguma marca na transcrição fonológica. E para aprender... só estudando. Assim, mãos à obra!