sábado, 19 de fevereiro de 2011

COUP

Quem leu o vocabulário do futebol que eu linkei na última postagem deve ter percebido a recorrência do substantivo coup, palavrinha com um milhão de traduções, que deixa alguns alunos confusos. Mas não é nada de mais. Para começo de conversa, vamos nos entender sobre a pronúncia: [ku], a mesma de cou (pescoço) ou de coût (custo), e nenhum deles tem nada a ver com as calças. Se você pronunciar [kup], vai dizer coupe (corte - tipo de representação gráfica - ou corte de cabelo; copa - Coupe du Monde de fototball; taça - de sorvete ou sobremesa).
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Para compreender os diferentes sentidos que esse substantivo pode carregar, vamos partir daquele que é o central, etimologicamente falando: "golpe" (o baixo latim colpus deu origem aos vocábulos português e francês). Assim, coup d'État é "golpe de estado", coup de poing é "soco", coup de pied é "chute" e coup de tête, "cabeçada" (um golpe com a cabeça ou uma ação impensada, lembre no Zidane em 2006). Aliás, muitas das palavras formadas com o sufixo -ada em nosso idioma se tornam expressões com coup de em francês:
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coup d'oeil : olhada (pense em nosso "golpe de vista")
coup de marteau : martelada
coup de pinceau : pincelada
coup de couteau : facada
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Ou seja, qualquer ação ou movimento efetuados com um objeto ou uma patre do corpo, como os exemplos acima, dará origem a uma expressão com coup de. Em um texto anterior, comentei sobre essa tendência analítica do francês, que usa algumas palavrinhas versáteis como mise, prise ou coup para exprimir conceitos que normalmente correspondem a palavras criada por sufixação, em português.
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Voltando ao que dizíamos no início do parágrafo anterior, veremos que um coup de feu é um tiro de revólver ou pistola (um "golpe de fogo") e um coup de fusil eu não precisaria explicar... se não fosse, além do sentido literal, uma gíria para uma conta muito alta no restaurante ou no hotel (se você tentar traduzir o nosso "facada" e disser que levou um coup de couteau depois daquele jantar elegante em Paris, vão achar que você foi atacado por um maníaco).
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Alguns casos são curiosos:
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coup de fil : telefonema (literalmente, seria uma "fiada" - vale lembrar que muita gente diz "bater um fio" no sentido de "dar uma ligada", "telefonar")
coup de pouce : "mãozinha", ajuda discreta (literalmente, seria uma "polegarzada")
coup de vent : ventania
coup de foudre : raio; mas a expressão é mais usada para designar o "amor à primeira vista", aquele que nos atinge como uma descarga elétrica
coup de grâce : golpe de misericórdia
coup de dés : lance de dados ("Un coup de dés jamais n'abolira le hasard", obra de Mallarmé)
faire d'une pierre deux coups : matar dois coelhos com uma cajadada só
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Mas coup ainda pode designar um evento qualquer, como na expressão du coup, que equivale ao nosso "daí" (no sentido de "então"), ou o uso de determinado procedimento ("il a été massacré à coups d'insinuations absurdes"). Se você ouvir falar que alguém é um bon coup, isso significa que a pessoa é satisfação garantida entre quatro paredes. Agora, um coup bas significa, sem surpresa, um "golpe baixo", no boxe e em outras circunstâncias.
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Você já percebeu que, quando o assunto é coup... o buraco é sempre mais embaixo! Se quiser se aprofundar mais no assunto, vai encontrar um artigo bastante detalhado sobre essa palavra no TLF (Trésor de la Langue Française), o melhor dicionário de francês on-line que eu conheço. Basta clicar aqui.
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Para terminar, não custa nada relembrar o grande clássico Ne me quitte pas, em que Jacques Brel diz a sua amada que é preciso "esquecer o tempo dos mal-entendidos e o tempo perdido a descobrir como esquecer essas horas que matavam às vezes à coups de pourquoi o coração da felicidade".
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Para ver a canção interpretada pelo autor, clique aqui. O vídeo está legendado, com uma boa tradução - só achei estranha, justamente, a tradução de à coups de pourquoi... Você pode propor uma tradução melhor nos comentários. E pode, também, passar o tempo curtindo as muitas versões que essa música recebeu no mundo inteiro. Mas, quando escutar a Maria Gadú, faça isso unicamente para curtir o arranjo inovador e a interpretação, muito agradável. De maneira alguma aprenda a pronunciar com ela!!! Um dia ainda explico por quê.

4 comentários:

  1. le coup de foudre au 1e coup d'oeil, avant le 1e coup de fil...en général, c'est un coup de bol!!!!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Salut, Monsieur Sandro!
    Primeiramente gostaria de parabenizar-te pelo belíssimo blog e pelas dicas de francês que me estão sendo muito úteis no aprendizado da língua de Molière, é um ótimo trabalho que desenvolve neste espaço.

    Sei que o que venho dizer aqui não diz respeito ao assunto do post, mas tenho uma dúvida que acho que poderías me esclarecer a respeito de ortografia. Se não for muito incômodo de minha parte, ficaria feliz de saber o que achas a respeito. Vamos lá:
    Fiquei sabendo a pouco tempo que a língua francesa passou por uma "reforma ortográfica" e teve a grafia de diversas palavras retificada sendo algumas das principais alterações: a perda do acento circunflexo sobre as letras I e U (coût, goût, brûler,dîner, paraître,por exemplo, passaram a ser grafados cout, gout, bruler, diner, paraitre); várias palavras compostas perdem o hífen e passam a ser grafadas de forma aglutinada (porte-monnaie, week-end passam a portemonnaie e weekend) enquanto todos os numerais passam a ser separados por hífen(quatre-vingt-un, soixante-dix-sept, trois-cent-mille-cinq-cent-soixante-quatre, etc); algumas grafias tidas como "ilógicas" onde refletiam em dificuldade ou discrepância em relação à pronúncia, passam a ser grafadas de acordo com as "regras usuais de ortografia do francês" (événement, douceâtre, oignon, chariot se transformam em évènemet, douçâtre, ognon, charriot...) além de outras modificações como plural de palavras compostas e de estrangeirismos, concordância do particípio passado e outras grafias isoladas que passaram pela retificação ortográfica.

    O que me deixou um pouco surpreso é que esta chamada de ORTHOGRAPHE RECOMMANDÉE foi ratificada pela Académie em 1990 e é apenas, como diz o próprio nome, recomendada, tendo as velhas formas escritas validade por um tempo indeterminado, talvez para sempre, sendo tão corretas quanto as novas e assim convivem umas com as outras criando uma duplicidade ou em alguns casos, pluralidade de grafias possíveis, co-existentes e aceitas. Mas me custa acreditar nisso.
    Já perguntei e pesquisei em vários lugares mas praticamente ninguém sabe me informar qual a real situação destas retificações ortográficas na França ou outros países francófonos; se realmente são utilizadas pelos nativos do idioma e se, eu mesmo, como aprendiz/estudante/entusiasta da língua, deveria ou não utilizá-las quando fosse escrever qualquer coisa que seja. Desde que estudo francês, nunca fui incentivado a utilizar a Nouvelle Orthographe. Pra falar a verdade, nem mesmo sabia de sua existência, apesar de já existir desde 1990 e lá se vão uns vinte anos desde então sem nunca ter ouvido falar nisso.
    Mas desde que tomei conhecimento, fico meio receoso quando me deparo com, ou tenho de utilizar, um circunflexo, um hífen, e fico em dúvida de como escrever. Gostaria de saber de ti, que és um conhecedor da língua, e decerto deves saber, a quantas anda a nova ortografia do francês. Peço desculpas pelo comentário quilométrico e ao mesmo tempo agradeço desde já e aguardo uma resposta.
    Por enquanto fica a dúvida: Teria um GOUT (sem circunflexo) algum tanto de MAUVAIS GOÛT?

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  4. Bonjour João.

    Já ouvi falar dessa reforma, mas o fato é que, talvez pelo fato de a ortografia francesa estar fixada há muito tempo, os circunflexos continuam firmes e fortes na imprensa e na literatura. Os acentos são meio complicadinhos (já até escrevi sobre isso por aqui) e o hífen, então, veio para confundir, não para explicar. Na verdade, em muitos casos, a solução é simplesmente consultar o dicionário. Meio frustrante, mas...

    Por falar em dicionário, o TLF, do qual sou fã e que já mencionei em diversas ocasiões, não parece ter tomado muito conhecimento da Orthographe Recommandée. Assim, embora não queira ter a pretensão de te dar conselho, vou te dizer o que eu faço: escrevo como antes! Aliás, até os dicionários franceses (atualizados) passaram batidos por essas modificações na escrita. Trocando em miúdos: os franceses parecem não se importar muito com os caprichos da grafia de seu idioma (ainda que muita gente cometa erros). Se bobear, a maioria dos nativos deve pensar que "gout" é errado...

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