quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Não foram poucas as vezes em que algum conhecido ou algum aluno, ao se deparar com meu ateísmo declarado, me disse algo como “não acredito na religião, mas acredito na ”. Trata-se, em geral, de pessoas que estudaram, que ouviram críticas perfeitamente razoáveis, às vezes duríssimas, à igreja católica, às diferentes denominações protestantes ou, ainda, ao judaísmo ou ao Islã. Trata-se, em geral, de pessoas que não frequentam nenhum culto, que não dão importância a rituais místicos ou a práticas transcendentais. Trata-se, em geral, de pessoas que nem acreditam no deus das religiões ou que fabricaram para si mesmas um deus tão vago, tão abstrato, tão indefinível, que acho que é só um modo de não confessar para si mesmos que são ateus.
.
O que mais me incomoda em “ateus enrustidos” é que muitas vezes eles têm um lado condescendente com a religião, um certo medo de chocar os outros ao dizer o que eles realmente pensam, uma estranha vergonha de seu ceticismo. No caso particular desses que dizem “eu acredito na ”, parece-me que o problema é uma compreensão meio vaga do sentido desse termo.
.
Fé é uma palavra empregada em diversas expressões, como “tenho fé que vai fazer sol”, “vai com fé que dá certo” ou “Fulano não tem fé na vida”. Acredito que estamos, aqui, diante de expressões idiomáticas nas quais “fé” significa “confiança”, “boa-vontade” ou “otimismo”. Vou, então, tentar pôr os pingos no is e definir do que estou falando quando escrevo “fé” no meu texto. O sentido central desse termo, que está subjacente às expressões citadas acima, é o de convicção. Mas, se você olhar direito, vai perceber que essa convicção tem um componente importante: ela não é baseada em dados materiais objetivos, precisos. Imagine se um meteorologista afirmasse “tenho fé que o domingo vai ser ensolarado”! Ele não gozaria de muito crédito. Ou estaria gozando da nossa cara.
.
Essa compreensão de fé como “convicção sem base material” é especialmente válida para aqueles que, em sua vida, costumam validar suas ideias e ações por argumentos sólidos mas que, confrontadas com o questionamento da religião, ao não encontrar u m modo de fundamentar sua crença, apelam para a chamada “fé”. Há também, como eu mencionei acima, aqueles que não creem, mas que dizem “crer na crença”, ou seja, têm “fé (confiança) na fé (crendice – dos outros)”.
.
Para esses últimos, gostaria de explicar por que Richard Dawkins diz que a fé é a “mãe de todas as burcas”: somos ensinados a pensar que ter fé é algo positivo, mas ter fé signifgica simplesmente estar imbuído de uma crença que não se baseia em argumentos – estamos, na verdade, falando de um sentimento que pode impelir a fazer o bem, a ser gentil, a realizar grandes gestos de generosidade, mas também a condenar, oprimir e até matar, tendo como único respaldo uma ideia que vem do além e se transforma numa certeza individual que não admite negociação. Qualquer pessoa familiarizada com a história da humanidade vai perceber que as crenças fortes, o mais das vezes, serviram muito mais para atiçar do que para refrear nossos impulsos malignos. Como alguém já disse: “Sem a religião, pessoas boas fariam o bem e pessoas más fariam o mal. Somente a religião pode fazer uma pessoa boa praticar o mal.” Basta pensar nas Cruzadas, na Inquisição, nas burcas islâmicas, na excisão de clitóris de meninas de dois anos (prática corrente em muitas tribos africanas) e nos muitos atos de violência perpetrados contra mulheres, homossexuais, negros, crianças, “infiéis” diversos...
.
Você pode também pegar esse exemplo de um homem que agiu inspirado por sua fé:

Convém lembrar que esse conceito de fé se aplica igualmente ao soldado nazista convencido da superioridade da raça ariana, ao oficial da KGB preocupado em defender o governo do proletariado ou ao general brasileiro dos anos 60-70 que trabalhava para garantir que nosso Brasil Varonil estivesse “em ordem”. É aquela história: fé cega... e faca amolada!

3 comentários:

  1. Meu caro,
    Apesar de também ser ateu, o que já me rendeu problemas com alunos religiosos, não tenho uma visão tão negativa das religiões. Compartilho muitas das suas opiniões, mas deixe-me fazer o advogado do diabo.

    Cruzadas, inquisições e demais ataques terroristas não são regra. Na maior parte do tempo, as pessoas vivem em paz as suas religiões. Condenar a religiosidade por causa do Onze de Setembro me parece algo como condenar a ciência por causa da bomba atômica. O cotidiano da religiosidade (a chamada "piedade popular") às vezes se distancia muito da teologia. Basta lembrar que não importa o que o Papa diga, boa parte dos brasileiros vai à missa no domingo e à macumba na sexta-feira...

    Acusá-los de incoerência? Isso seria culpá-los por não seguir regras que nós, ateus, condenamos (no caso, as ordens papais). Feliz ou infelizmente, as pessoas não têm a racionalidade como guia permanente, as formas de conciliar modos de ser aparentemente incongruentes são muito diversificadas.

    Nas últimas décadas temos vivido um crescimento das religiões mais radicais, do fundamentalismo religioso. Acho que o Bauman (em Identidade) tem algumas pistas interessantes sobre isso, relacionadas à fluidez das relações pessoais na modernidade tardia (ou era líquido-moderna, como ele chama).

    Vejo a religião como uma forma de identificação social perfeitamente legítima. Muitos ateus tratam os religiosos como pessoas fracas e iludidas. Não acho. Acho que a prática religiosa tem muito isso do compartilhar uma visão de mundo, de se sentir membro de uma comunidade.

    A solução para os radicalismos é conhecida desde o século XIX: Estado laico e democracia. Repito sem hesitar o que diz o Hélio Schwartzman, "praticar uma religião é perfeitamente legítimo. Trata-se, afinal, de atividade que pode proporcionar prazer a seus adeptos e oferecer-lhes oportunidade de reforçar vínculos sociais. É como pertencer a um círculo literário, fazer esporte ou frequentar sites pornográficos -- cada um sabe o que é melhor para si".

    Mas precisamos, sim, de respeito às liberdades individuais.

    Abraço.

    ResponderExcluir
  2. nada a ver com o assunto do post....
    mas como não me lembro do seu email, segue um link sobre a pronuncia do quebec e a pronuncia da frança...
    www.youtube.com/watch?v=6UFBHBYD6bU
    bjs

    ResponderExcluir
  3. Caro Vítor, obrigado pelo comentário. Demorei para te responder porque não estava entrando muito na Internet.

    Mas vamos lá, "advogado do Diabo" (ou de Deus?). Concordo com tudo o que você expõe. Costumo brincar, dizendo que a maioria dos crentes leva a religião menos a sério do que nós, ateus. É muito comum que as pessoas enxerguem suas religiões como um self-service em que elas "catam" só o que lhes parece interessante. Felizmente, as bizarrices e atrocidades do Velho Testamento não fazem muito sucesso hoje em dia.

    Assim, gostaria de frisar que não tenho uma visão tão negativa das religiões quanto o tom de meu texto pode dar a entender (nunca sei ao certo se estou soando agressivo, é difícil tentar ser conciso sem ficar um tanto seco). De fato, episódios de violência extrema como as Cruzadas, a Inquisição e o Onze de Setembro são minoritários. Mas não podemos esquecer que a religião fundamenta diversos tipos de violência simbólica contra ateus, adeptos de outras religiões, mulheres, homossexuais... um tipo de violência ligada exatamente à ideia de pertencimento a um grupo, que nem sempre é algo inocente.

    Aliás, o sectarismo (ou “communautarisme”, para usar um termo que não sei traduzir), como você próprio indica, está crescendo. Nesses novos fundamentalismos, eu incluiria as igrejas pentecostais, que conhecem grande sucesso no Brasil, com consequências que vão desde poluição sonora e depredação de terreiros de umbanda até eleição de deputados que fazem oração para agradecer pela propina ou a tragédias como a mostrada no vídeo do post.

    Por sinal, o crescimento dessas igrejas me leva a temer pelo futuro de nosso Estado laico (que nunca chegou a se realizar plenamente, e não me parece num bom caminho). E é aí que entra o ponto central que busquei desenvolver: não acredito que a religião (a visão de mundo que ela defende) seja necessariamente ruim, mas penso que a fé, entendida como a certeza que não se funda em nenhuma argumentação, é algo negativo. Ainda mais se levarmos em conta como ela é valorizada em nossa sociedade.

    Para dar um exemplo, podemos pensar na moralidade. A que se baseia na fé estabelece um conjunto de comportamentos tidos como certos, outros tidos como errados e ponto final. Não precisa explicar. Em alguns países regidos por leis islâmicas, masturbação e homossexualidade são crimes. Uma moralidade baseada na razão vai perceber que esses comportamentos se situam numa esfera de intimidade sobre a qual não cabe nenhum tipo de ingerência.

    Princípios morais injustificados estão na raiz de muitos dos comportamentos de violência simbólica que eu mencionei acima. E quem já teve de aturar um patrão ou um colega recalcado sexualmente sabe os males que esse tipo de repressão pode causar à sociedade!

    Grande abraço.

    ResponderExcluir