segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Respeito e liberdade de expressão

Dentre as poucas pessoas que ainda estão interessadas em falar sobre a chacina ocorrida em Paris no dia 7 de janeiro, infelizmente muitas ainda sustentam uma conversa fiada sobre "respeito". É aquela história de "não sou a favor do terrorismo, mas os cartunistas do Charlie Hebdo eram muito desrespeitosos com as religiões”. O papa Francisco, habitualmente "liberal" (para os padrões da Igreja Católica), também deu declarações no sentido de que a liberdade de expressão não autoriza a “ofensa” às religiões.
"Vaticano: Mais uma eleição fraudulenta!" "Tirai-me daqui, eu quero votar!"
Apenas uma provocação vazia ou uma crítica pertinente?
Como eu disse em meu post anterior, por mais que essas pessoas não queiram, elas acabam por dar razão aos terroristas e caem no mesmo raciocínio dos que dizem "não sou a favor do estupro, mas aquela menina estava usando roupas muito curtas" ou "não sou racista, mas você tem que concordar que nas prisões tem mais preto do que branco". 

Como vocês veem, essa história de "respeito" às religiões me incomoda bastante, pois essa palavra muitas vezes não passa de uma forma educada de silenciar as vozes discordantes. Acontece que religiões são sistemas de ideias e instituições compostas por homens (que, diga-se de passagem, interferem em questões bastante terrestres). E, se não pudermos criticá-los – e inclusive debochar deles, pois o humor é muitas vezes tudo o que nos resta , teremos voltado à Idade das Trevas. 

Antes de tudo, quem define o que é "respeito"? Para uns, pode ser não desenhar figuras religiosas em caricaturas escatológicas ou sexuais. Par outros, pode ser pura e simplesmente não falar de religião no humor. Para alguns fundamentalistas, o fato de existirem pessoas que não seguem as regras impostas pela religião deles é, por si só, "ofensivo". Gostaria de saber o que esse pessoal do relativismo disse quando a jovem paquistanesa Malala Yousafzai, que militava pela educação para as meninas de seu país, sofreu uma tentativa de assassinato por parte de uma milícia talibã, quando ainda tinha entre 11 e 12 anos. Ora, ela "ofendeu" os extremistas islâmicos, não? Será que os relativistas a criticaram por ter "provocado" o atentado de que foi vítima? Será que argumentaram que ela era "colonialista" e queria impor valores ocidentais à sociedade paquistanesa?
Em 1989, o carnavalesco Joãosinho Trinta teve seu carro "Cristo Mendigo" censurado e o cobriu de plástico preto para o desfile. A alegoria, que se inseria em um enredo sobre a desigualdade social no Brasil, continha uma réplica do Cristo Redentor do Corcovado e, a seus pés, uma multidão de maltrapilhos. Por algum motivo, a Igreja a considerou ofensiva e a Justiça de um país supostamente laico lhe deu razão.
Não vem necessariamente ao caso, mas o Corão não contém nenhuma proibição quanto à representação de Maomé – o mesmo vale para a burca e para a circuncisão (essa última é apenas recomendada, mas não obrigatória). O que é proibido é a idolatria, mas uma coisa não tem necessariamente a ver com a outra e há, inclusive, diversas imagens produzidas no mundo muçulmano mais antigo que contêm representações do profeta.
Maomé recebendo a revelação do anjo Gabriel em manuscrito do início do século XIV
Detalhe do "Milagre das Abelhas", iluminura do final do século XVI feita em Constantinopla para o sultão Mourad III)
Manuscrito persa medieval, representando o profeta Maomé que conduz Jesus e Abraão para a oração)
Bom, mesmo que houvesse uma proibição para os muçulmanos, o fato simples é que ela não vale para os que não seguem essa religião. Somos obrigados a observar as proibições e as obrigações estipuladas por sistemas religiosos e filosóficos dos quais não somos adeptos? E se eu dissesse que é a liberdade de expressão, para mim, que é sagrada?

Agora, voltando ao nosso tema: a liberdade de expressão deve ser exercida sem absolutamente nenhum limite? Não. O que a lei francesa estipula (e a lei brasileira segue a mesma linha) é que o conceito de liberdade de expressão não inclui, por exemplo, a calúnia, a difamação, o racismo e a incitação ao ódio. Mas a blasfêmia não é proibida, o que mostra o bom-senso dos legisladores. Até porque a França viu (e continua a ver, infelizmente) muito sangue ser derramado em nome de querelas religiosas, e compreende que um Estado laico deve permitir o livre debate de ideias nesse campo.

Religiões são sistemas de ideias e, como tais, devem poder ser objeto de crítica livre. Figuras religiosas (Jesus, Deus, Maomé e outros profetas, papas, bispos, imãs, aiatolás, rabinos...) são símbolos dessas ideias e devem igualmente poder ser criticados. O que se poderia considerar desrespeitoso seria uma caricatura que insinuasse que TODOS os muçulmanos são terroristas, que TODOS os evangélicos são fanáticos ou que TODOS os católicos são preconceituosos. A crítica a determinados comportamentos de parte dos fiéis ou dos representantes dessas religiões é não só legítima, como também necessária.

Alguns conservadores, na França e no Brasil, sempre usando esse discurso do "sou contra a violência, MAS o respeito é fundamental", propuseram a instituição de leis contra a blasfêmia. Isso mostra que, no fundo, eles concordam com as razões que supostamente levaram os terroristas a cometerem o impensável. E expõe a linha que separa os dois campos nessa discussão: não se trata de opor o Ocidente e o Oriente, os cristãos e os muçulmanos ou os ateus e os crentes. A verdadeira oposição se dá entre os defensores da laicidade e da convivência e os que não aceitam que seus sistemas de pensamento (no caso, suas ideias religiosas) possam ser livremente questionados. 
"Deus não existe..." "Existe sim!" 
"Tem que cobrir o 'Charlie Hebdo' com um véu!"
Em uma edição especial dedicada aos processos judiciais enfrentados pelo Charlie Hebdo (em que a revista sofreu algumas derrotas), Cabu deixava claro que, para ele, os fundamentalistas formavam um bloco único contra a liberdade de expressão. Não havia nenhuma obsessão "anti-muçulmana".
"Alá é grande o suficiente para defender Maomé sozinho... entendeu?"
Ora, artistas como Cabu, Charb, Honoré, Wolinski e Tignous usavam seus desenhos justamente para criticar os excessos daqueles que se escondiam atrás da Bíblia e do Corão para exterminar a liberdade e a vida dos outros. 
"A imprensa é livre na Tunísia." "Legal!"
A linguagem irreverente e o anticlericalismo desses eternos rebeldes de 1968 podem chocar algumas almas sensíveis, mas a caricatura de tradição francesa sempre foi bastante crua e várias personalidades públicas foram representadas, por exemplo, com objetos introduzidos no ânus, e isso muito antes do Charlie Hebdo nascer. Além disso, quem conhece o trabalho dos caricaturistas Charlie Hebdo sabe que eles não faziam provocações gratuitas e percebe a má-fé dos que argumentam que eles eram “islamofóbicos” ou “racistas”. Na verdade, eles criticavam duramente os verdadeiros racistas e islamofóbicos: a extrema-direita, o governo de Israel e os radicais islâmicos, que matam tantos muçulmanos pelo mundo afora. Faziam isso com uma frequência infinitamente maior do que publicavam caricaturas de Maomé. E nada, absolutamente nada relativiza o horror de que eles foram vítimas.

"Se Maomé voltasse..." "Eu sou o profeta, imbecil!" "Cala a boca, infiel!"
Charb deixava bem claro que não confundia muçulmanos e terroristas e que pensava que esses últimos não representavam a religião que dizem professar.
"Então, está achando legal ter um país?" 
Os símbolos deixam claro que se trata de um israelense militarista que fala com um palestino.
"Um assento para a Palestina na ONU?" "Só tinha isso..."
"Gaza" "A população é prisioneira do Hamas!" "Então, a gente mata os reféns..."
"Não nos deixemos comover!" "Esconderijo de armas do Hamas!" 
"O colo do útero parece dilatado, vai sair um morteiro!"
"Aí, toma essa, Golias!"
Por sinal, em excelente análise publicada no blog da Boitempo, o filósofo e psicanalista esloveno Slavoj Žižek mostra bem que os terroristas islâmicos têm convicções religiosas muito mais fracas do que se pensa (um link está disponível no final). Esses fundamentalistas, na verdade, continuam praticando abusos e massacres pelo mundo afora (Nigéria, Afeganistão, Arábia Saudita etc.), vitimando, na maioria das vezes, outros muçulmanos – é essa, aliás, a crítica veiculada em uma capa mais antiga do Charlie Hebdo.

"Matança no Egito - O Corão é uma merda - Ele não é à prova de balas"
Por trás da linguagem escrachada e vulgar, a crítica a um massacre promovido por islamistas no Egito, mostrando que os radicais não respeitam sequer aqueles que, a princípio, professam a mesma fé que eles.
No entanto, tenho a impressão de que o batalhão politicamente correto se comove menos com as atrocidades dos terroristas do que com desenhos publicados por uma revista de extrema-esquerda com um público tão restrito que, em dezembro, estava à beira da falência e pedia doações aos leitores. Essa revista, por sinal, militava ativamente contra o racismo da extrema-direita e contra o massacre perpetrado na Palestina pelo Estado de Israel, mas não faltaram comentaristas que chegaram de paraquedas, viram meia dúzia de caricaturas de Maomé no Google e, antes mesmo de tentar entendê-las, taxaram o Charlie Hebdo de “islamofóbico” e “racista”.

O fato é que os caricaturistas do Charlie Hebdo teriam sido assassinados mesmo que só tivessem feito desenhos de Maomé dizendo "eu sou o verdadeiro Profeta". Porque as caricaturas eram só um pretexto para uma ação espetacular destinada a atrair jovens muçulmanos para a radicalização. Por sinal, a capa da edição do Charlie Hebdo lançada uma semana depois da carnificina foi considerada “ofensiva” por alguns, apesar de apresentar uma mensagem de perdão (como deixei claro no início, o tabu relativo à representação pictórica de Maomé não está no Corão e não era observado por muçulmanos da idade média – mais próximos, a bem da verdade, de Maomé, do que os wahabitas e salafistas dogmáticos do século XXI).
"Tudo foi perdoado" Na capa da edição lançada uma semana após os atentados, a caricatura de Luz, um dos sobreviventes da chacina mostra Maomé segurando uma placa na qual se lê "Eu sou Charlie"
A luta contra a confusão muçulmanos e extremistas, por sinal, já havia sido demonstrada em 2011, quando, uma semana após um incêndio criminoso nos locais do Charlie Hebdo, a capa foi a seguinte:
"O amor mais forte do que o ódio"
A verdade é que os assassinos são psicopatas e são apenas o subproduto de uma minoria absolutamente insignificante dos muçulmanos da França. Só isso. Teve gente que disse que os únicos que tiveram ganhos políticos com os massacres de Paris foram os adeptos da extrema-direita; os mais exaltados até inventaram teorias da conspiração que alegavam que os atentados teriam sido obra da CIA, dos serviços secretos israelenses ou do governo francês, que teriam como objetivo sujar a imagem dos muçulmanos.

Isso é ingenuidade: se fosse assim, a Al-Qaeda não teria reivindicado o atentado e o Estado Islâmico não teria parabenizado os irmãos Kouachi. Opor o Charlie Hebdo aos "muçulmanos" é cair exatamente na armadilha dos terroristas, que querem ver o crescimento da islamofobia para poder contar com mais adeptos: ao contrário do que dizem alguns, o ato desses bárbaros não foi um grito de "basta" de pessoas feridas em seus sentimentos religiosos, mas uma jogada muito bem-calculada para envenenar o debate público na França e no mundo e ganhar mais adeptos para seus projetos de horror. As chacinas, bem como o crescimento da islamofobia que elas podem suscitar, são de interesse dos jihadistas. O que eles querem é dividir a sociedade e marginalizar os muçulmanos, pois essa é a melhor forma de fazê-los cair no radicalismo e integrar as redes terroristas que atuam no Ocidente ou os batalhões de fanáticos que arriscam a própria vida pelo EI.

Há também os que ironizam gente que, como eu, critica o suposto humor “politicamente incorreto” praticado por alguns no Brasil, mas defendem o “politicamente incorreto” do Charlie Hebdo. Vamos deixar claro: "Je suis Charlie" é uma frase de solidariedade às famílias das vítimas e, nesse sentido, simboliza acima de tudo a defesa da liberdade de expressão e o repúdio do extremismo do que uma adesão irrestrita às ideias da revista – que eu adoro, diga-se de passagem. 

É preciso cuidado com as palavras: "politicamente incorreto" é uma expressão ampla demais e pode designar tanto a crítica despudorada dos que abusam de seu poder ou da fragilidade alheia (era o que faziam Charb, Honoré, Cabu, Tignous e Wolinski) quanto a escrotice dos que reforçam antigas estruturas de poder (é o caso das piadas machistas, racistas e classistas de "humoristas" como Danilo Gentili). Não há nenhuma contradição entre defender os primeiros e atacar os últimos: Laerte e Angeli, grandes cartunistas brasileiros, são considerados "politicamente incorretos" (criança dos anos 80, ri muito com o humor escrachado das histórias que eles e outros publicavam em revistas como Chiclete com banana ou Circo). Mas o Zorra Total também é, e não precisa fazer muita força para perceber a diferença entre eles. Seja como for, para quem se interessa, vale lembrar que Marcelo Coelho publicou na Folha, em 2011, um texto que esclarece essa questão (link no final).

Fora isso, quantos atos desrespeitosos são cometidos em nome da religião? Filhos são expulsos de casa por serem homossexuais, terreiros de umbanda são depredados, culturas indígenas milenares são destruídas por missionários cristãos, mulheres são tratadas de "putas" por não estarem vestidas do jeito "certo", crianças pequenas sofrem mutilação genital (circuncisão ou excisão do clitóris)... Na França, no Brasil, no mundo inteiro, fundamentalistas religiosos fazem tudo o que podem para impedir que adultos do mesmo sexo possam se casar. Nos EUA, cristãos fanáticos conseguiram impedir, em alguns Estados, o ensino da Teoria da Evolução nas escolas porque eles pensam que isso vai contra a religião deles (como se religião fosse assunto para a escola!) e alguns já chegaram ao ponto de matar funcionários de clínicas que realizavam abortos dentro da lei. Em todos os lugares do mundo, pregadores mais exaltados (cristãos e muçulmanos) passam o dia clamando que as pessoas que não seguem os dogmas deles são imorais e estão condenadas ao sofrimento eterno no inferno. No Brasil, há igrejas que colocam alto-falantes virados para a rua e torturam cruelmente a vizinhança, como se Deus fosse surdo.
"Você tem que usar um véu!" "Você quer levar a Mão de Fátima no meio da fuça?"
"Casamento gay? Eu e meu namorado somos contra"
Crítica ao Arcebispo de Paris, que se opõe à adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Na capa da revista, lê-se "Casamento gay: Monsenhor Vingt-Trois tem três papais. 'O pai' 'O filho' 'O Espírito Santo'"
É contra esse tipo de coisa que o Charlie Hebdo lutava. E continuará a lutar! Sinceramente, perto desses horrores, acho insignificante a carga de "desrespeito" de uns desenhos publicados em uma revista de pequena tiragem (30.000 exemplares, antes do atentado), comprada por pessoas que sabem exatamente o tipo de humor que vão encontrar. Qualquer pessoa que se diz "ofendida" por umas caricaturas deveria pensar que há coisas muito mais ofensivas no mundo, cometidas por determinados indivíduos, grupos e instituições em nome de Deus, de Alá ou de seja lá o que for.

Je suis Charlie !

Para ver o meu texto anterior, clique aqui.

Para ler o texto do Žižek, clique aqui.

Para ler o texto do Marcelo Coelho, clique aqui.

Para entender melhor a questão da representação de Maomé no Islã, clique aqui, aqui e aqui (em francês).

sábado, 17 de janeiro de 2015

Ser ou não ser Charlie?

Como não passou despercebido a ninguém que vive no planeta Terra, no dia 7 de janeiro, um gravíssimo atentado terrorista na sede da revista satírica Charlie Hebdo e um sequestro em uma loja de produtos para judeus vitimaram 14 pessoas, entre elas 4 dos mais importantes chargistas da França: Cabu, Charb, Wolinski e Tignous. A internet foi inundada com a hashtag #jesuischarlie, em um grande movimento de repúdio à violência e de defesa da liberdade de expressão.

Acontece que, com a repercussão do caso, muitos tomaram conhecimento do trabalho do Charlie Hebdo e de suas caricaturas marcadas por um humor ácido e extremamente provocador, para dizer o mínimo: Maomé de quatro com uma estrela na bunda, Deus fazendo sexo com Jesus e com o Espírito Santo... Não demorou muito para que surgisse a hashtag #jenesuispascharlie. Essa reação veio principalmente dos tradicionais inimigos da revista, a extrema-direita xenófoba e os conservadores religiosos, mas também de certa esquerda bem-pensante que argumentou que as charges eram muito ofensivas e ultrapassavam o limite do “bom-senso”.
 
"Maomé: nasce uma estrela!"

Crítica ao Arcebispo de Paris, que se opõe à adoção de crianças por casais do mesmo sexo. Na capa da revista, lê-se "Casamento gay: Monsenhor Vingt-Trois tem três papais. 'O pai' 'O filho' 'O Espírito Santo'"
Por mais que não se queira, essa conversa de “nada justifica a violência, mas...” sempre contribui para a mesma coisa: pôr a culpa da vítima. Podem falar o que quiserem: dizer “não concordo com o assassinato dos desenhistas, mas o trabalho deles era escandaloso” é a mesma coisa que dizer “sou contra o estupro, mas aquela moça estava usando uma saia muito curta”. É simples: uma pessoa decente é contra a barbárie e ponto. Não tem nada de “mas”!

Alguns desenvolveram a ideia de que o Charlie Hebdo era islamofóbico ou colonialista. Ora, o combate da revista sempre foi exatamente contra o racismo e a discriminação e não é à toa que o maior alvo dela sempre foi a Frente Nacional, o principal partido da extrema-direita francesa. Outro alvo constante era o governo de Israel, por conta do massacre que ele faz na Palestina. Por sinal, a capa do Charlie Hebdo do dia do atentado era justamente uma crítica ao escritor Michel Houellebecq, que acaba de lançar um romance intitulado “Submissão”, ambientado em uma França dominada por um partido islâmico.
"As previsões do mago Houellebecq: em 2015, eu perco os meus dentes... em 2022, eu faço o ramadã"
Para acusar Cabu e cia. de islamofobia, é preciso realmente não conhecê-los ou fazer questão de interpretar errado. Foi exatamente o caso quando, em 2007, um ano depois da polêmica sobre a revista dinamarquesa que havia publicado uma caricatura de Maomé, Cabu desenhou o profeta islâmico dizendo “é dureza ser amado por imbecis”. O título do desenho, que se tornou a capa de um número especial do Charlie Hebdo, deixava bem claro que a mensagem se dirigia aos extremistas: “Maomé de saco cheio dos fundamentalistas”. Mas não faltou quem dissesse que a piada visava todos os muçulmanos.

Mais um exemplo: outra caricatura de Cabu, que mostra dois radicais (um islâmico e um católico) de braços dados e na qual se lê: “Um só Deus... dois suspeitos”. Alguns fanáticos, no intuito de difamar o caricaturista, demonstraram toda a sua má-fé divulgando o desenho de forma adulterada: apagaram os adjetivos nas capas dos livros, onde está escrito “Corão fundamentalista” e “Bíblia fundamentalista”.

Charb dizia, a respeito da polêmica sobre as caricaturas envolvendo a religião islâmica, que “é preciso continuar até que o Islã seja algo tão corriqueiro quanto o catolicismo”. Em francês, a frase dele foi: "Il faut continuer jusqu'à ce que l'islam soit aussi banalisé que le catholicisme". No texto “Eu não sou Charlie, je ne suis pas Charlie”, compartilhado pelo site de Leonardo Boff, a frase foi amputada de uma parte e traduzida de forma mais literal: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”.

Sei que mina tradução parece menos próxima do original, mas é mais fiel. Explico: o adjetivo “banalizado” tem, em português, uma conotação negativa que não existe necessariamente em francês. É verdade que falamos em “sexe banalisé” ou em “violence banalisée” para dizer as mesmas coisas que dizemos em português com “sexo banalizado” e “violência banalizada”, mas também falamos em “véhicule banalisé” para falar de uma viatura policial disfarçada de carro de passeio.

O texto compartilhado por Boff dá às palavras do enfant terrible do Charlie Hebdo um tom que elas não tinham no contexto em que foram ditas e, logo em seguida, parte para o ataque: “‘É preciso’ porque [sic]? Para quê” O autor tenta, com isso, sugerir que o Charlie era islamofóbico e “imperialista”, por querer “impor os valores ocidentais” à “cultura alheia”. Ora, diferentemente dos EUA ou do Reino Unido, a França não é constituída com base em um sistema de “comunidades”. Os que falam da “intégration” à francesa como de um apagamento da cultura de origem das pessoas que vêm viver aqui não percebem que os franceses e os estrangeiros residentes são considerados membros de uma República na qual a laicidade do Estado garante a liberdade religiosa e a liberdade de expressão assegura que todos podem defender as ideias que quiserem, nos limites da lei (que condena a calúnia, a difamação e a apologia ao crime). Charb e seus companheiros não consideravam que os muçulmanos como “estrangeiros”, mas como concidadãos capazes de viver em uma democracia.

Tem outra história que também esclarece as coisas. Em setembro de 2011, o Théâtre du Rond-Point, que estava cercado por fundamentalistas católicos que queriam impedir a encenação de uma peça que eles julgavam “imoral’, publicou em seu site uma entrevista em que o mesmo Charb mostra bem que ele recusava não só os preconceitos, como também as generalizações:

“Tem gente que se preocupa em ver que os muçulmanos moderados não reagem. Não há muçulmanos moderados na França, não há sequer muçulmanos, há pessoas que são de cultura muçulmana, que respeitam o ramadã como eu posso festejar o Natal e ir comer peru na casa dos meus pais, mas eles não têm que se engajar especialmente contra o Islã radical na condição de muçulmanos moderados, uma vez que eles não são muçulmanos moderados, eles são cidadãos. E na condição de cidadãos, eles agem sim, eles compram o Charlie Hebdo, eles fazem passeatas com a gente, eles votam contra os babacas de direita. O que enche o meu saco é que eles sempre sejam interpelados na condição de muçulmanos moderados, não há muçulmanos moderados. É como se me dissessem: ‘Reaja na condição de católico moderado’. Eu não sou católico moderado, ainda que seja batizado. Eu nem sou católico.”

Dizer que o Charlie Hebdo alimentava a islamofobia é ignorar que os cartunistas sacaneavam simplesmente TODAS as religiões, bem como todas as ideologias que promoviam a violência e a exclusão (o militarismo e a extrema-direita, especialmente). É ignorar, também, a presença de muçulmanos ou de pessoas de origem muçulmana não só entre os milhões que se solidarizam com a revista desde o atentado que ela sofreu em 2011 e especialmente depois do massacre do dia 7, entre os intelectuais e jornalistas que hoje se manifestam pela liberdade de expressão, mas até mesmo entre os integrantes da equipe de redação e em suas famílias.

Fora isso, não sejamos ingênuos. Os terroristas não querem combater a islamofobia: ela os alimenta e empurra jovens muçulmanos para o terror. Se eles quisessem matar um islamofóbico de verdade, teriam atacado um dos prefeitos da Frente Nacional que impedem a construção de mesquitas ou entravam a aquisição de locais de culto por parte de associações islâmicas. Ou teriam dado um tiro num cretino como Eric Zemmour, que afirmou a um jornal italiano que os muçulmanos são incompatíveis com a República Francesa e deveriam ser enviados para outros países. Por sinal, o azedume paranoico de Zemmour era alvo do Charlie.
 
"71% dos franceses se declaram pessimistas (IFOP) 'Pessimistas... pessimistas... por acaso temos cara de pessimistas?'"
Alguns falam em “respeito” e a pergunta que fica é a seguinte: quem define o que é “respeito”? Os fundamentalistas? Se for assim, minha mulher deveria andar de burca para não “chocar” a sensibilidade de algum maluco que acha que uma mulher que não cobre inteiramente o corpo é “imoral”? As mulheres na Nigéria ou no Afeganistão deveriam deixar de frequentar a escola para não ferir os sentimentos religiosos dos malucos do Boko Haram ou do Talibã?

Pessoas merecem respeito, mas se não houver liberdade para criticar ideias, a democracia morre. Quando se pensa bem, porque o corolário dessa doutrina do “respeito” é o silenciamento total do debate público: se tivéssemos que respeitar radicalmente a sensibilidade dos simpatizantes de todas as correntes religiosas ou ideologias políticas e a “reputação” de todas as personalidades públicas... não poderíamos falar de mais nada! Dizer que o humor deve se limitar por “respeito” é dar a vitória aos terroristas e, de quebra, ainda fazer o jogo da extrema-direita islamofóbica: fazendo isso, não só concordaríamos, no fundo, com a ideologia deles, mas também daríamos a eles o estatuto de representantes dos muçulmanos.

Outros alegam que as caricaturas eram “provocação”. Sim, justamente: esse é o papel da arte, o resto é decoração. Participantes do movimento contestador de maio de 68 ou herdeiros diretos dele, os cartunistas apostavam no escracho como arma no combate contra o fanatismo e contra o excesso do politicamente correto. Nesse sentido, a obra deles era uma provocação aos terroristas. Algo do tipo: “Não posso desenhar Maomé? Então não só vou desenhar, como também vou mostrá-lo de quatro com uma estrela na bunda!” Pode ser vulgar, ofensivo ou de mau-gosto (cada um vê como quer), mas nada justifica e nem mesmo relativiza a violência.

Li coisas do tipo “o Charlie Hebdo retratava os muçulmanos de modo estereotipado e como terroristas”. Perdoem-me pelo excesso de sinceridade, mas quando ouço uma besteira dessas, sinto um pedaço do meu cérebro morrer. Primeira consideração: muçulmano e islamista não é a mesma coisa – o primeiro é um adepto de uma religião, o segundo é um espécime de uma minoria fanática que quer impor uma versão violenta dessa religião ao mundo inteiro. O alvo das críticas do Charlie eram esses últimos. Segunda consideração: caricatura é crítica – por que representar um “muçulmano moderado”, se não se tem uma crítica a dirigir a ele? Cabu tinha, sim, um personagem que representava certo tipo de “francês médio”, o beauf, caracterizado por suas ideias tacanhas e conservadoras – seria ele “antifrancês”? (Por sinal, a palavra beauf pegou tanto para falar dessa categoria de pessoas que entrou para o dicionário.) Terceira consideração: como representar um “muçulmano moderado”, se ele faz parte da paisagem e não se encaixa em um estereótipo de roupa?

Outras críticas partem em considerações segundo as quais a França é um país xenófobo, os franceses são majoritariamente racistas e os muçulmanos são cidadãos de segunda classe... Ninguém nega que muitos muçulmanos, por aqui, sofrem discriminação e pertencem a classes desfavorecidas. Por sinal, muita gente na França se mobiliza contra isso, e trata-se de gente de todas as cores, religiões e classes sociais. Além de que os que descrevem a França quase como um país de apartheid fazem o exagero do exagero (não custa dizer que a desigualdade aqui é bem menor do que no Brasil). E generalizar que todos os franceses são “racistas” e “xenófobos” é tão injusto quanto generalizar que todos os muçulmanos são “fanáticos” e “terroristas”. Coisa de quem não conhece o país e o povo. “Ah, mas eu vi um texto escrito por um francês dizendo que era assim” – pode ser, mas só por isso é verdade? E os outros (muçulmanos, negros e árabes, inclusive) que afirmam em alto e bom som que não é assim?

O que muitos não sabem no Brasil é que tem muita gente aqui na França que faz um retrato distorcido da realidade, no objetivo de reforçar o communautarisme, ou seja, o isolamento em comunidades étnicas ou religiosas e a negação dos valores republicanos. Um dos grupos que mais fazem isso se chama “Les Indigènes de la République” – eles têm um discurso "anticolinialista" que parece ser de “conscientização” mas, quando se olha mais de perto, o ódio antifrancês e o antissemitismo estão lá, firmes e fortes. Para dizer tudo, a armadilha está justamente em enxergar o problema por uma lógica torta que opõe franceses e muçulmanos, como se tivéssemos, de cada lado, blocos uniformes, é fazer justamente o jogo dos radicais, sejam eles os islamistas ou os xenófobos de extrema-direita.

Fora que “explicar” a violência extrema por problemas socioeconômicos (que, por sinal, também afligem franceses de outras confissões) é de um simplismo que dói: caso fosse uma relação de causa-efeito, não haveria jovens oriundos de famílias francesas de boas condições econômicas que partem para o jihad.

Mas, voltando ao nosso assunto, mesmo que essas considerações estereotipadas sobre a realidade social na França fossem verdadeiras: o que os caras do Charlie Hebdo têm a ver com isso, se eles lutavam justamente contra o racismo, o fanatismo e a intolerância? Imaginem que um louco, no Brasil, matasse Larte e Angeli, cartunistas brasileiros cuja obra tem afinidades com a de Charb, Cabu, Wolinski e Tignous: faria sentido alguém querer mostrar “o outro lado da questão” dizendo que os governos de Geraldo Alckmin ou de Sérgio Cabral são excludentes ou truculentos?

É por isso que eu digo: cuidado com os discursos que, por trás de uma retórica que fala de “respeito” ou de “bom-senso”, servem apenas para colocar algumas coisas acima da crítica. E, de passagem, ainda relativizam o horror do que aconteceu no dia 7 de janeiro. Assim, eu digo em alto e bom som: Je suis Charlie!