Uma das maiores pegadinhas para quem aprende francês é a construção NE + verbo + QUE, que tem cara de negação mas exprime, na realidade, a restrição, podendo ser traduzida como "só" ou "somente". Trata-se de uma tournure tão tipicamente francesa que os alunos raramente a assimilam, ainda que o professor volta e meia assinale sua importância e sua grande frequência de uso.
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Na verdade, o brasileiro que estuda francês costuma usar seulement para exprimir o que diria com nossa palavrinha só. Ainda que não esteja incorreto, soa quase tão artificial quanto dizer apenas ou somente em uma conversa coloquial. Assim, quando um aluno diz “il y a seulement dix personnes en salle de classe” (pensando “só tem dez pessoas em sala de aula”), ele não comete nenhum erro gramatical, mas um francês provavelmente diria “il n’y a que dix personnes en salle de classe”. A questão é que nós, professores, normalmente não vamos interromper uma conversa para acertar uma frase que já está certa e que seria perfeitamente compreendida por um falante nativo (corrigir o aluno às vezes atrapalha o diálogo, e estamos interessados no que ele tem a dizer); com isso, essa maneira não tão natural de falar acaba se cristalizando.
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O grande problema, na verdade, nem é dizer seulement, por mais que soe um pouco deslocado, mas deixar de aprender a construção NE + verbo + QUE, de longe a mais usada. Dessa forma, para dizer “Só estou com 20 euros aqui no bolso”, o natural é mandar um “Je n’ai que 20 euros sur moi” ou, seguindo a tendência de engolir o “ne” na fala corriqueira, “J’ai que 20 € sur moi”. Ao que alguém poderia responder: “Que ça?!” (“Só isso?!)
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Para fazer a restrição sobre o sujeito da frase ou sobre o verbo, é preciso usar tournures que parecem meio complicadas mas que são bastante correntes, como “Il n’y a que lui qui puisse régler ce problème” ("Só ele pode resolver esse problema"). Como você deve estar imaginando, em francês coloquial, costuma sair “Y’a que lui...” Já para focar a restrição sobre um verbo, usa-se faire para ajudar. Assim, a melhor forma de dizer “Ele só trabalha” é “Il ne fait que travailler” (“Ele só faz trabalhar”), sem esquecer da tendência a omitir o ne da negação no francês oral.
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Enfim, é preciso lembrar que há outras maneiras importantes de exprimir a restrição em francês: juste, rien que, c’est tout e seul.
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Com esse último, uma particularidade interessante: ele concorda em gênero e número com o substantivo a que se refere. Assim, repare o plural na citação de P. Hazard : “Seuls doivent compter les faits positifs” (“Só devem importar os fatos positivos”, ou “Somente os fatos concretos devem ser levados em conta”). Nossa expressão “Só Deus sabe” seria, em francês, “Dieu seul le sait”. Digo “seria” porque os franceses, comparados com os brasileiros, usam muito pouco essas expressões de origem católica – isso está ligado, segundo meu ponto de vista, ao fato de mais da metade dos franceses se declararem non-croyants (ateus ou agnósticos) e à cultura francesa de laicidade (religião é algo privado e ninguém precisa étaler suas convicções o tempo todo).
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Juste funciona como seulement, normalmente determinando substantivos. Assim, “Ele trabalha só três dias por semana” sairia “Il travaille juste trois jours par semaine” (ou “Il ne travaille que trois jours par semaine”). Juste também significa “justo” e “certo”. Por sinal, juste foi o ponto de partida para uma cena divertidíssima de Le dîner de cons. O personagem interpretado por Thierry Lhermitte tenta dizer a François Pignon que uma certa pessoa se chamava Juste Leblanc. Vendo a cena e a dificuldade de Pignon em captar a mensagem, você vai entender o que significa a palavra con, caso não saiba...
Rien que costuma causar estranheza, mas não é nenhum bicho de sete cabeças: “Rien que de penser à cette scène, j’ai envie de rire” (“Só de pensar nessa cena, fico com vontade de rir”). E a expressão “c’est tout” costuma ser usada no final da frase: “Je lis, c’est tout” (“Só estou lendo”).
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Viu? Só isso. OK, depois de um texto verborrágico como esse, você pode me olhar cinicamente e disparar: “Ah bon, c’est tout ?”