Como não passou despercebido a ninguém que vive no planeta
Terra, no dia 7 de janeiro, um gravíssimo atentado terrorista na sede da
revista satírica Charlie Hebdo e um sequestro em uma loja de produtos para judeus vitimaram 14 pessoas, entre elas 4 dos mais
importantes chargistas da França: Cabu, Charb, Wolinski e Tignous. A internet
foi inundada com a hashtag #jesuischarlie, em um grande movimento de repúdio à
violência e de defesa da liberdade de expressão.
Acontece que, com a repercussão do caso, muitos tomaram
conhecimento do trabalho do Charlie Hebdo e de suas caricaturas marcadas por um
humor ácido e extremamente provocador, para dizer o mínimo: Maomé de quatro com
uma estrela na bunda, Deus fazendo sexo com Jesus e com o Espírito Santo... Não
demorou muito para que surgisse a hashtag #jenesuispascharlie. Essa reação veio
principalmente dos tradicionais inimigos da revista, a extrema-direita xenófoba
e os conservadores religiosos, mas também de certa esquerda bem-pensante que
argumentou que as charges eram muito ofensivas e ultrapassavam o limite do
“bom-senso”.
Por mais que não se queira, essa conversa de “nada justifica
a violência, mas...” sempre contribui para a mesma coisa: pôr a culpa da vítima.
Podem falar o que quiserem: dizer “não concordo com o assassinato dos desenhistas,
mas o trabalho deles era escandaloso” é a mesma coisa que dizer “sou contra o
estupro, mas aquela moça estava usando uma saia muito curta”. É simples: uma
pessoa decente é contra a barbárie e ponto. Não tem nada de “mas”!
Alguns desenvolveram a ideia de que o Charlie Hebdo era
islamofóbico ou colonialista. Ora, o combate da revista sempre foi exatamente
contra o racismo e a discriminação e não é à toa que o maior alvo dela sempre
foi a Frente Nacional, o principal partido da extrema-direita francesa. Outro
alvo constante era o governo de Israel, por conta do massacre que ele faz na
Palestina. Por sinal, a capa do Charlie Hebdo do dia do atentado era justamente
uma crítica ao escritor Michel Houellebecq, que acaba de lançar um romance
intitulado “Submissão”, ambientado em uma França dominada por um partido
islâmico.
"As previsões do mago Houellebecq: em 2015, eu perco os meus dentes... em 2022, eu faço o ramadã" |
Para acusar Cabu e cia. de islamofobia, é preciso realmente
não conhecê-los ou fazer questão de interpretar errado. Foi exatamente o caso
quando, em 2007, um ano depois da polêmica sobre a revista dinamarquesa que
havia publicado uma caricatura de Maomé, Cabu desenhou o profeta islâmico
dizendo “é dureza ser amado por imbecis”. O título do desenho, que se tornou a
capa de um número especial do Charlie Hebdo, deixava bem claro que a mensagem
se dirigia aos extremistas: “Maomé de saco cheio dos fundamentalistas”. Mas não
faltou quem dissesse que a piada visava todos os muçulmanos.
Mais um exemplo: outra caricatura de Cabu, que mostra dois
radicais (um islâmico e um católico) de braços dados e na qual se lê: “Um só
Deus... dois suspeitos”. Alguns fanáticos, no intuito de difamar o
caricaturista, demonstraram toda a sua má-fé divulgando o desenho de forma
adulterada: apagaram os adjetivos nas capas dos livros, onde está escrito
“Corão fundamentalista” e “Bíblia fundamentalista”.
Charb dizia, a respeito da polêmica sobre as caricaturas
envolvendo a religião islâmica, que “é preciso continuar até que o Islã seja
algo tão corriqueiro quanto o catolicismo”. Em francês, a frase dele foi: "Il faut continuer jusqu'à ce que
l'islam soit aussi banalisé que le catholicisme". No texto “Eu não
sou Charlie, je ne suis pas Charlie”, compartilhado pelo site de Leonardo Boff,
a frase foi amputada de uma parte e traduzida de forma mais literal: “É preciso
que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”.
Sei que mina tradução parece menos próxima do original, mas
é mais fiel. Explico: o adjetivo “banalizado” tem, em português, uma conotação
negativa que não existe necessariamente em francês. É verdade que falamos em
“sexe banalisé” ou em “violence banalisée” para dizer as mesmas coisas que
dizemos em português com “sexo banalizado” e “violência banalizada”, mas também
falamos em “véhicule banalisé” para falar de uma viatura policial disfarçada de
carro de passeio.
O texto compartilhado por Boff dá às palavras do enfant terrible do Charlie Hebdo um tom
que elas não tinham no contexto em que foram ditas e, logo em seguida, parte
para o ataque: “‘É preciso’ porque [sic]? Para quê” O autor tenta, com isso,
sugerir que o Charlie era islamofóbico e “imperialista”, por querer “impor os
valores ocidentais” à “cultura alheia”. Ora, diferentemente dos EUA ou do Reino
Unido, a França não é constituída com base em um sistema de “comunidades”. Os
que falam da “intégration” à francesa como de um apagamento da cultura de
origem das pessoas que vêm viver aqui não percebem que os franceses e os
estrangeiros residentes são considerados membros de uma República na qual a
laicidade do Estado garante a liberdade religiosa e a liberdade de expressão
assegura que todos podem defender as ideias que quiserem, nos limites da lei (que
condena a calúnia, a difamação e a apologia ao crime). Charb e seus
companheiros não consideravam que os muçulmanos como “estrangeiros”, mas como
concidadãos capazes de viver em uma democracia.
Tem outra história que também esclarece as coisas. Em
setembro de 2011, o Théâtre du Rond-Point, que estava cercado por
fundamentalistas católicos que queriam impedir a encenação de uma peça que eles
julgavam “imoral’, publicou em seu site uma entrevista em que o mesmo Charb
mostra bem que ele recusava não só os preconceitos, como também as
generalizações:
“Tem gente que se
preocupa em ver que os muçulmanos moderados não reagem. Não há muçulmanos
moderados na França, não há sequer muçulmanos, há pessoas que são de cultura
muçulmana, que respeitam o ramadã como eu posso festejar o Natal e ir comer
peru na casa dos meus pais, mas eles não têm que se engajar especialmente
contra o Islã radical na condição de muçulmanos moderados, uma vez que eles não
são muçulmanos moderados, eles são cidadãos. E na condição de cidadãos, eles
agem sim, eles compram o Charlie Hebdo,
eles fazem passeatas com a gente, eles votam contra os babacas de direita. O
que enche o meu saco é que eles sempre sejam interpelados na condição de
muçulmanos moderados, não há muçulmanos moderados. É como se me dissessem: ‘Reaja
na condição de católico moderado’. Eu não
sou católico moderado, ainda que seja batizado. Eu nem sou católico.”
Dizer que o Charlie Hebdo alimentava a islamofobia é ignorar
que os cartunistas sacaneavam simplesmente TODAS as religiões, bem como todas
as ideologias que promoviam a violência e a exclusão (o militarismo e a
extrema-direita, especialmente). É ignorar, também, a presença de muçulmanos ou
de pessoas de origem muçulmana não só entre os milhões que se solidarizam com a
revista desde o atentado que ela sofreu em 2011 e especialmente depois do
massacre do dia 7, entre os intelectuais e jornalistas que hoje se manifestam
pela liberdade de expressão, mas até mesmo entre os integrantes da equipe de
redação e em suas famílias.
Fora isso, não sejamos ingênuos. Os terroristas não querem
combater a islamofobia: ela os alimenta e empurra jovens muçulmanos para o
terror. Se eles quisessem matar um islamofóbico de verdade, teriam atacado um
dos prefeitos da Frente Nacional que impedem a construção de mesquitas ou entravam
a aquisição de locais de culto por parte de associações islâmicas. Ou teriam
dado um tiro num cretino como Eric Zemmour, que afirmou a um jornal italiano
que os muçulmanos são incompatíveis com a República Francesa e deveriam ser
enviados para outros países. Por sinal, o azedume paranoico de Zemmour era alvo
do Charlie.
"71% dos franceses se declaram pessimistas (IFOP) 'Pessimistas... pessimistas... por acaso temos cara de pessimistas?'" |
Alguns falam em “respeito” e a pergunta que fica é a
seguinte: quem define o que é “respeito”? Os fundamentalistas? Se for assim,
minha mulher deveria andar de burca para não “chocar” a sensibilidade de algum
maluco que acha que uma mulher que não cobre inteiramente o corpo é “imoral”? As
mulheres na Nigéria ou no Afeganistão deveriam deixar de frequentar a escola
para não ferir os sentimentos religiosos dos malucos do Boko Haram ou do
Talibã?
Pessoas merecem respeito, mas se não houver liberdade para
criticar ideias, a democracia morre. Quando se pensa bem, porque o corolário dessa
doutrina do “respeito” é o silenciamento total do debate público: se tivéssemos
que respeitar radicalmente a sensibilidade dos simpatizantes de todas as
correntes religiosas ou ideologias políticas e a “reputação” de todas as personalidades
públicas... não poderíamos falar de mais nada! Dizer que o humor deve se
limitar por “respeito” é dar a vitória aos terroristas e, de quebra, ainda
fazer o jogo da extrema-direita islamofóbica: fazendo isso, não só
concordaríamos, no fundo, com a ideologia deles, mas também daríamos a eles o
estatuto de representantes dos muçulmanos.
Outros alegam que as caricaturas eram “provocação”. Sim,
justamente: esse é o papel da arte, o resto é decoração. Participantes do
movimento contestador de maio de 68 ou herdeiros diretos dele, os cartunistas
apostavam no escracho como arma no combate contra o fanatismo e contra o
excesso do politicamente correto. Nesse sentido, a obra deles era uma
provocação aos terroristas. Algo do tipo: “Não posso desenhar Maomé? Então não
só vou desenhar, como também vou mostrá-lo de quatro com uma estrela na bunda!”
Pode ser vulgar, ofensivo ou de mau-gosto (cada um vê como quer), mas nada
justifica e nem mesmo relativiza a violência.
Li coisas do tipo “o Charlie Hebdo retratava os muçulmanos de
modo estereotipado e como terroristas”. Perdoem-me pelo excesso de sinceridade,
mas quando ouço uma besteira dessas, sinto um pedaço do meu cérebro morrer. Primeira
consideração: muçulmano e islamista não é a mesma coisa – o primeiro é um
adepto de uma religião, o segundo é um espécime de uma minoria fanática que
quer impor uma versão violenta dessa religião ao mundo inteiro. O alvo das
críticas do Charlie eram esses últimos. Segunda consideração: caricatura é
crítica – por que representar um “muçulmano moderado”, se não se tem uma
crítica a dirigir a ele? Cabu tinha, sim, um personagem que representava certo
tipo de “francês médio”, o beauf, caracterizado por suas ideias tacanhas
e conservadoras – seria ele “antifrancês”? (Por sinal, a palavra beauf pegou tanto para falar dessa
categoria de pessoas que entrou para o dicionário.) Terceira consideração: como representar um “muçulmano moderado”,
se ele faz parte da paisagem e não se encaixa em um estereótipo de roupa?
Outras críticas partem em considerações segundo as quais a
França é um país xenófobo, os franceses são majoritariamente racistas e os
muçulmanos são cidadãos de segunda classe... Ninguém nega que muitos
muçulmanos, por aqui, sofrem discriminação e pertencem a classes
desfavorecidas. Por sinal, muita gente na França se mobiliza contra isso, e
trata-se de gente de todas as cores, religiões e classes sociais. Além de que
os que descrevem a França quase como um país de apartheid fazem o exagero do exagero
(não custa dizer que a desigualdade aqui é bem menor do que no Brasil). E
generalizar que todos os franceses são “racistas” e “xenófobos” é tão injusto
quanto generalizar que todos os muçulmanos são “fanáticos” e “terroristas”.
Coisa de quem não conhece o país e o povo. “Ah, mas eu vi um texto escrito por
um francês dizendo que era assim” – pode ser, mas só por isso é verdade? E os
outros (muçulmanos, negros e árabes, inclusive) que afirmam em alto e bom som
que não é assim?
O que muitos não sabem no Brasil é que tem muita gente aqui na
França que faz um retrato distorcido da realidade, no objetivo de reforçar o communautarisme, ou seja, o isolamento
em comunidades étnicas ou religiosas e a negação dos valores republicanos. Um
dos grupos que mais fazem isso se chama “Les Indigènes de la République” – eles
têm um discurso "anticolinialista" que parece ser de “conscientização” mas, quando se olha mais de
perto, o ódio antifrancês e o antissemitismo estão lá, firmes e fortes. Para
dizer tudo, a armadilha está justamente em enxergar o problema por uma lógica
torta que opõe franceses e muçulmanos, como se tivéssemos, de cada lado, blocos
uniformes, é fazer justamente o jogo dos radicais, sejam eles os islamistas ou
os xenófobos de extrema-direita.
Fora que “explicar” a violência extrema por problemas
socioeconômicos (que, por sinal, também afligem franceses de outras confissões)
é de um simplismo que dói: caso fosse uma relação de causa-efeito, não haveria
jovens oriundos de famílias francesas de boas condições econômicas que partem
para o jihad.
Mas, voltando ao nosso assunto, mesmo que essas
considerações estereotipadas sobre a realidade social na França fossem
verdadeiras: o que os caras do Charlie Hebdo têm a ver com isso, se eles
lutavam justamente contra o racismo, o fanatismo e a intolerância? Imaginem que
um louco, no Brasil, matasse Larte e Angeli, cartunistas brasileiros cuja obra
tem afinidades com a de Charb, Cabu, Wolinski e Tignous: faria sentido alguém
querer mostrar “o outro lado da questão” dizendo que os governos de Geraldo
Alckmin ou de Sérgio Cabral são excludentes ou truculentos?
É por isso que eu
digo: cuidado com os discursos que, por trás de uma retórica que fala de
“respeito” ou de “bom-senso”, servem apenas para colocar algumas coisas acima
da crítica. E, de passagem, ainda relativizam o horror do que aconteceu no dia
7 de janeiro. Assim, eu digo em alto e bom som: Je suis Charlie!
Meu caro, algumas partes de seu texto faz sentido. Mas em geral nao me convence!
ResponderExcluirDeveriamos ser contra qualquer tipo de violencia. E por isso mesmo, voce nao acha violento o que as charges retratam? Um profeta, seguido e respeitado por bilhoes de pessoas por todo o mundo, enraizado a sentenas de anos em uma cultura, ser mostrado em um grande meio de comunicaçao em uma forma visualmente e moralmente violenta. Se querem criticar e vender, que essa são as missões do Charlie, poderiam chamar a atenção de forma mais inteligente e respeitosa. Se na mesma forma retratasem a mae de alguem, e a pessoa tiver uma indole violenta, irá responder com violencia. Muitos nao tem essa indole, por isso mesmo que tao poucos responderam com violencia. Mas pra mim humor e critica tem limites, aprendemos isso desda creche. Meu direito termina quando começa a do outro.
O Charlie é violento e violentou pessoas que são violentas, assim sendo violentados.
E mais uma coisa querido, Islamismo é uma religião e mulçumano ou islamita é o seguidor dessa religião.. Seus conceitos estão errados e isso ja poe seu texto em uma suferficialidade danada :) Enfim....de qualquer forma estamos juntos, levantamos a mesma bandeira com perspectivas dierentes!!
Ygui, vamos concordar que debochar de uma religião é uma violência de tipo diferente do que a que acontece quando você metralha uma pessoa.
ExcluirA segunda coisa é com relação aos "conceitos": no Brasil, muita gente fala de Islamismo para se referir à religião. É um dos significados possíveis, mas acho que isso provoca confusão. Na linguagem que adotei no texto (posso até dar uma melhorada para que fique mais claro), uso os termos de acordo com as convenções usadas no jornalismo francês: "Islã" (Islam) é a religião e "islamismo" (islamisme) é a doutrina política que prega a imposição de uma versão radical do Islã. Os adeptos dessa doutrina são os "islamistas" (islamistes), e você pode ver que eu não usei esse termo, e não "islamita" (que, de fato, é sinônimo de muçulmano). Assim, tenha mais atenção antes de sair dizendo que meu texto é superficial -- ele é, mas já foi muito mais longo do que o recomendado para um blog. Fora que deve ter ficado bem explícito que eu penso que os terroristas não representam os muçulmanos franceses.
Sobre a questão do "respeito" na liberdade de expressão, escrevi um texto: http://sandrodecott.blogspot.fr/2015/01/respeito-e-liberdade-de-expressao.html